Difícil não é sentir a falta de quem nos faz falta.
É pensar no tempo que falta, no tempo que não volta e sufoca, e nas voltas da vida que o tempo nos dá. Fica a esperança de que o tempo aqui me sorria e me traga a vida de volta.
E tem sorrido...


8.4.08

Beleza Interior

O fim-de-semana grande proporcionou-nos uma viagem em grande de três dias rumo ao incerto desconhecido: a província de Malange, terra da palanca negra gigante, das quedas de Kalandula e das pedras altas de Pungo Andongo. Para muitos, o berço da nação Angolana.

Cedo partimos de Luanda, com tempo e com chuva ao romper da aurora. Pela frente esperava-nos uma viagem de mais de quatrocentos quilómetros e com quatrocentos mil buracos na estrada. Ou mais... Estranhamente, ou não, pareceu-me até que atingimos esse número ainda antes de sair da cidade. Com o sol por companhia, o pó de Luanda cede lentamente seu lugar à estrada de pó e ao verde da planície, e a confusão de casas amontoadas transforma-se aos poucos em simplicidade de casas dispersas. Sair da cidade teve também como consequência um furo em uma das rodas de um dos nossos jipes – o meu, claro. Pela primeira vez tive um furo! Incrível... E chato. Mas não sei porquê, parecia-me que este primeiro azar seria um sinal de sorte. Sorri à chuva intensa que veio ajudar e uma hora mais tarde (experimentem substituir uma roda de uma pick-up com um macaco de um automóvel ligeiro...) seguimos de novo viagem.
A paisagem é linda. Mesmo. Verde planície que abraça a estrada com desejo de se mostrar. O casario se mostra também aos poucos, ora destruído ou em destruição. Incógnito. O caminho torna-se numa viagem à nossa história, à guerra e ao tempo presente de Angola, numa mistura de deslumbramento e desencanto. Curioso como por entre o pó da estrada e o meio dos destroços nas povoações por onde se passa se descobre destruída a nossa feliz presença e se sente a presença fria da guerra ainda quente. E esta destruição toca-nos, como se estivéssemos numa visita por um museu vivo que emerge aos nossos olhos como poeira que nunca assenta no chão.



Almoçamos bem no Cacuso, a cerca de oitenta quilómetros do nosso destino final. O nosso olhar que tanto se prendeu outrora na beira do caminho puxou-nos agora ali para bem perto, até uma enorme igreja em renovação. Quase Sé e único edifício em renovação que, mesmo ainda sem tecto, já desponta a curiosidade futura pela sua incrível beleza e imponência. Naquele lugar sagrado também nós nos tornámos curiosidade, aos olhos de quem passava e nos via ali, ou de quem ouvia nossas vozes cantando e ecoando na nave daquela igreja.
Chegamos a Malange já era noite. Desde o Cacuso até à capital da província (os tais oitenta quilómetros) fomos tentando encontrar uma estrada por entre os buracos que nos apareceram pela frente. Em vão. Foi um sacrifício para nós e para os jipes fazer este bocado do percurso, mas de tão ansiosos que estávamos de chegar ao hotel e descansar um pouco da viagem, sorrimos enfim por ver as luzes de Malange ao longe. Chegámos mesmo.

Tínhamos quartos reservados na casa dos horrores de Malange... perdão: no Hotel Gigante. Azar, ou apenas destino, não havia mais quartos vagos em nenhum outro hotel de Malange. Não vou alongar-me muito a descrever este antro, pois não merece nem publicidade negativa. Aliás... chamar àquela espelunca de hotel já é um autêntico crime, e de gigante só mesmo as baratas. Merece uma passagem... bem ao largo.

Dia 2. Acordámos do pesadelo (quem conseguiu dormir um pouco) e cedo deixamos a cidade de Malange rumo às quedas de Kalandula. O percurso fez-se em constante deslumbramento por entre os buracos da estrada e muitas paragens para contemplar e gravar tantas imagens de rara e enorme beleza. O enorme capim cortado pelas águas de um rio que serpenteia pela planície e que sob ela passa várias vezes, e pelas sanzalas junto à estrada, onde nascem mais olhares de crianças por cada carro que passa. Chegamos enfim a Kalandula. Uma pequena e acolhedora povoação situada no alto de um planalto, imponente como rainha que do seu trono observa suas terras ao longe e bem ao longe de tudo. Conserva ainda algumas marcas do colonialismo, nas casas, nas igrejas e nos próprios costumes da terra, que tem simpatia como sinónimo. Chegamos logo depois às quedas de Kalandula. Duque de Bragança eram seu nome ancestral, e acredito que encontrei a razão quando as descobri de perto e as encontrei majestosas e incrivelmente reais. As segundas maiores quedas de água de todo o continente africano, com cerca de 100 metros de vertiginosa altura, são absolutamente indescritíveis.



Ali ficamos todo o dia que nos resta, em quietude sobre a água que cai a nossos pés e sob a chuva que se abate sobre nós, ambas água em queda constante. Fiquei inebriado com a leveza e transparência da água que cai, com uma força tal que nos ensurdece os sentidos e nos deixa mudos e sós. Abismados.
Regressamos já de noite animados para o desânimo do hotel em Malange. O cansaço do dia e da aventura passada deixa-nos dormir tranquilos nessa noite. Uma ultima noite de sono, num hotel onde, apesar do receio em fechar os olhos, sentimos que é o melhor que temos a fazer.

Dia 3. Nunca me senti tão feliz de fazer um check-out num hotel. Até dinheiro nos roubaram nessa altura, mesmo à frente dos nossos olhos... Mas a verdade é que estávamos livres de um pesadelo, e prontos para mais um dia de aventura que, apesar de ser o último e de marcar por isso o inadiável regresso a Luanda, teria muito ainda para viver e contar. O destino mais próximo: as pedras negras de Pungo Andongo. Chegando ao Cacuso, onde parámos de novo mas desta vez para visitar o mercado (muito) local, viramos para sul rumo ás Pedras Negras. Vêm-se ao longe, como se estivessem à distância de braço e quase as pudéssemos tocar. Mas o caminho, esse, seria bem mais longo do que parecia...



A picada estende-se como um tapete até ao coração das pedras, esburacado e enlameado, é certo, mas comparativamente melhor do que a estrada que deixámos para trás. A certo ponto, já bem junto às naturais muralhas de pedra, viramos para uma outra picada que nos leva até ao seu interior, à povoação de Pungo Andongo. O caminho parecia impossível, sem rasto ou marca de qualquer passagem anterior. O capim escondia completamente a estrada e só se abria para nós ao passar, como um abraço de boas-vindas. A terra e a lama ora se tornava em desfiladeiros de água e de pedras, ora em crateras por onde nunca julguei que um dia passaria um carro.



Chegamos a Pungo Andongo. Uma povoação escondida no seio das pedras altas, e que nos faz logo pensar que foram as próprias rochas que nasceram em sua volta como muralha para a proteger do resto do mundo. Três ou quatro casas, uma igreja em ruínas, um posto médico e uma escola renovada... quase como uma miragem impossível... como é possível existir vida ali? Mas existe.
Compreendi que ainda se pode encontrar em Angola a harmonia entre o homem e a natureza. O sentimento de protecção divina, de misticismo em todo o seu esplendor. Local de história e de estórias, de lendas de rainhas, de batalhas e de conquistas, de plantações de café e de trabalho na terra. Refúgio de vida enriquecida por todo um passado que aqui ainda está bem presente e que cresce em vivências de outras histórias. Local que não se esquece e que nos conquista o coração quando através dele subimos lá no alto e vemos tudo o nada que é tanto e que existe à sua volta. Sem palavras, só silêncio e pedra e um grito que ecoa e nos chega suavemente de volta ao coração.


Foi o local mais belo que encontrei até hoje em Angola. Talvez o mais belo e puro de tudo o que já encontrei em vida e em todos os lugares por onde passei. Difícil de superar pela sua beleza sagrada e que nos traz a paz à alma, como uma prece que ali é ouvida e tão gentilmente concedida. Senti ali que estive para lá das nuvens, e bem mais perto do céu.

Já a lua ia bem alta quando chegamos a Luanda. Cansados, mas com um brilho no olhar pelas imagens que trazemos connosco em constantes e doces lembranças.
Foi com um feliz pensamento de regressar um dia com mais tempo que adormeço. Nessa noite sonhei que voava sobre as pedras de Pungo Andongo e que deslizava depois nas águas de Kalandula, em serenidade e calma como uma criança renascida. Tivesse eu asas para lá ir sempre que pudesse…

Mas em Angola as coisas mais belas são aquelas que o homem não consegue nunca destruir: água que cai e pedra que fica. Sei por isso que estes dois elementos vivos da natureza ficarão para sempre, tal como ficaram dentro de mim, em eterna recordação de momentos e de amizades vividas.

2 comentários:

Sophia disse...

Inebriada fico só de te ler... :p
Inveja é uma coisa feia! Mas a minha não faz mal a ninguém. ;)
Pelo que descreves foi um verdadeiro espectáculo! (hotel à parte)

;) Baci

Anónimo disse...

Que grande odisseia. Deveras inesquecível, quer pela beleza, quer pelas dificuldades.
Pareces o Indiana Jones Alentejano. Mas o hotel era assim tão mau? Ao menos tinha ar condicionado? Calma estava só a brincar.
Um grande abraço e diverte-te.

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