Cedo partimos de Luanda, com tempo e com chuva ao romper da aurora. Pela frente esperava-nos uma viagem de mais de quatrocentos quilómetros e com quatrocentos mil buracos na estrada. Ou mais... Estranhamente, ou não, pareceu-me até que atingimos esse número ainda antes de sair da cidade. Com o sol por companhia, o pó de Luanda cede lentamente seu lugar à estrada de pó e ao verde da planície, e a confusão de casas amontoadas transforma-se aos poucos em simplicidade de casas dispersas. Sair da cidade teve também como consequência um furo em uma das rodas de um dos nossos jipes – o meu, claro. Pela primeira vez tive um furo! Incrível... E chato. Mas não sei porquê, parecia-me que este primeiro azar seria um sinal de sorte. Sorri à chuva intensa que veio ajudar e uma hora mais tarde (experimentem substituir uma roda de uma pick-up com um macaco de um automóvel ligeiro...) seguimos de novo viagem.
A paisagem é linda. Mesmo. Verde planície que abraça a estrada com desejo de se mostrar. O casario se mostra também aos poucos, ora destruído ou em destruição. Incógnito. O caminho torna-se numa viagem à nossa história, à guerra e ao tempo presente de Angola, numa mistura de deslumbramento e desencanto. Curioso como por entre o pó da estrada e o meio dos destroços nas povoações por onde se passa se descobre destruída a nossa feliz presença e se sente a presença fria da guerra ainda quente. E esta destruição toca-nos, como se estivéssemos numa visita por um museu vivo que emerge aos nossos olhos como poeira que nunca assenta no chão.

Almoçamos bem no Cacuso, a cerca de oitenta quilómetros do nosso destino final. O nosso olhar que tanto se prendeu outrora na beira do caminho puxou-nos agora ali para bem perto, até uma enorme igreja em renovação. Quase Sé e único edifício em renovação que, mesmo ainda sem tecto, já desponta a curiosidade futura pela sua incrível beleza e imponência. Naquele lugar sagrado também nós nos tornámos curiosidade, aos olhos de quem passava e nos via ali, ou de quem ouvia nossas vozes cantando e ecoando na nave daquela igreja.
Chegamos a Malange já era noite. Desde o Cacuso até à capital da província (os tais oitenta quilómetros) fomos tentando encontrar uma estrada por entre os buracos que nos apareceram pela frente. Em vão. Foi um sacrifício para nós e para os jipes fazer este bocado do percurso, mas de tão ansiosos que estávamos de chegar ao hotel e descansar um pouco da viagem, sorrimos enfim por ver as luzes de Malange ao longe. Chegámos mesmo.
Ali ficamos todo o dia que nos resta, em quietude sobre a água que cai a nossos pés e sob a chuva que se abate sobre nós, ambas água em queda constante. Fiquei inebriado com a leveza e transparência da água que cai, com uma força tal que nos ensurdece os sentidos e nos deixa mudos e sós. Abismados.
Regressamos já de noite animados para o desânimo do hotel em Malange. O cansaço do dia e da aventura passada deixa-nos dormir tranquilos nessa noite. Uma ultima noite de sono, num hotel onde, apesar do receio em fechar os olhos, sentimos que é o melhor que temos a fazer.
Dia 3. Nunca me senti tão feliz de fazer um check-out num hotel. Até dinheiro nos roubaram nessa altura, mesmo à frente dos nossos olhos... Mas a verdade é que estávamos livres de um pesadelo, e prontos para mais um dia de aventura que, apesar de ser o último e de marcar por isso o inadiável regresso a Luanda, teria muito ainda para viver e contar. O destino mais próximo: as pedras negras de Pungo Andongo. Chegando ao Cacuso, onde parámos de novo mas desta vez para visitar o mercado (muito) local, viramos para sul rumo ás Pedras Negras. Vêm-se ao longe, como se estivessem à distância de braço e quase as pudéssemos tocar. Mas o caminho, esse, seria bem mais longo do que parecia...

Chegamos a Pungo Andongo. Uma povoação escondida no seio das pedras altas, e que nos faz logo pensar que foram as próprias rochas que nasceram em sua volta como muralha para a proteger do resto do mundo. Três ou quatro casas, uma igreja em ruínas, um posto médico e uma escola renovada... quase como uma miragem impossível... como é possível existir vida ali? Mas existe.
Compreendi que ainda se pode encontrar em Angola a harmonia entre o homem e a natureza. O sentimento de protecção divina, de misticismo em todo o seu esplendor. Local de história e de estórias, de lendas de rainhas, de batalhas e de conquistas, de plantações de café e de trabalho na terra. Refúgio de vida enriquecida por todo um passado que aqui ainda está bem presente e que cresce em vivências de outras histórias. Local que não se esquece e que nos conquista o coração quando através dele subimos lá no alto e vemos tudo o nada que é tanto e que existe à sua volta. Sem palavras, só silêncio e pedra e um grito que ecoa e nos chega suavemente de volta ao coração.
Foi o local mais belo que encontrei até hoje em Angola. Talvez o mais belo e puro de tudo o que já encontrei em vida e em todos os lugares por onde passei. Difícil de superar pela sua beleza sagrada e que nos traz a paz à alma, como uma prece que ali é ouvida e tão gentilmente concedida. Senti ali que estive para lá das nuvens, e bem mais perto do céu.
Já a lua ia bem alta quando chegamos a Luanda. Cansados, mas com um brilho no olhar pelas imagens que trazemos connosco em constantes e doces lembranças.
Foi com um feliz pensamento de regressar um dia com mais tempo que adormeço. Nessa noite sonhei que voava sobre as pedras de Pungo Andongo e que deslizava depois nas águas de Kalandula, em serenidade e calma como uma criança renascida. Tivesse eu asas para lá ir sempre que pudesse…
Mas em Angola as coisas mais belas são aquelas que o homem não consegue nunca destruir: água que cai e pedra que fica. Sei por isso que estes dois elementos vivos da natureza ficarão para sempre, tal como ficaram dentro de mim, em eterna recordação de momentos e de amizades vividas.