Difícil não é sentir a falta de quem nos faz falta.
É pensar no tempo que falta, no tempo que não volta e sufoca, e nas voltas da vida que o tempo nos dá. Fica a esperança de que o tempo aqui me sorria e me traga a vida de volta.
E tem sorrido...


30.6.07

Dia 20 - O Dia de Praia

Sábado de sol de sal e de mar. Madruguei para mergulhar no meu primeiro dia de praia em Angola.
Escolhemos a ilha de Luanda. Talvez seja afinal o local ideal para todas as estreias...
Confesso que de dia é uma visão estranha. Uma ilha diferente. Durante o dia a ilha é de quem lá mora. É do mar e dos pescadores. É da pobreza contida nas gentes que nos abordam na estrada e nos invadem a consciência. A ilha é de quem aqui vive morrendo, no meio dos bairros feitos de lata e de lixo, e de quem sobrevive e depende da caridade que o mar lhes dá ou devolve com as marés de todos os dias.
À noite a ilha é dos outros e dos sítios que dela não são. É de quem a visita e não a vê nem quer ver.
Chegámos ao espaço térreo S. Jorge. Respirei fundo. Aliviado.
O acesso às melhores praias na ilha é normalmente feito por entre os melhores bares e restaurantes que ali se encontram. É assim em todo o lado em Angola. São eles que exploram a praia e são eles que nos exploram também.
Alugámos umas cadeiras de praia em madeira na areia quase deserta, sob os dourados chapéus de palha. Estava deserto por finalmente mergulhar nas ondas do mar. E estava certo que o mar me levaria para longe o pensamento e me deixaria vazio por dentro. E assim foi, por um momento. O mar estava agitado e as ondas enormes. E enquanto o mar levava o meu pensamento, as ondas levavam tudo o resto de mim. O meu resto. Eu completo.

Libertei-me e saí para a areia. Deitei-me depois na cadeira e pensei dormir agora a noite que felizmente não dormi. Mas fui surpreendido enquanto esperava dormente por esse sono que tardava. Sentia tão perto a brisa do mar... As gotas de água salgada a meus pés. E estranhamente tão perto. Mesmo demasiado perto.
Abri os olhos e num segundo e num instinto ainda inconsciente consegui agarrar minhas coisas e mais coisas e evitar que fossem com as ondas. Como foram as cadeiras os chapéus e tudo aquilo que o mar quis levar com ele. Dessa vez.
Até penso que tivémos sorte, no meio destas ondas de maré de azar.

Na meia hora seguinte mudámo-nos duas vezes de sítio, sempre recuando movidos pela força do mar. Vencidos pelas calemas (ondas gigantes, que ocorrem aqui nesta altura do ano) que ocuparam toda a areia em tempos nossa, e escaldados pela roupa molhada que trazíamos, optámos por almoçar ali mesmo, contemplando atentos o poder destrutivo e indestrutível do mar.
Incrível.
Toda a ilha ficou um caos flutuante, com a água que galgou a areia e que atravessou as estradas, as casas e os carros. O mar varreu todo o lixo da praia e da ilha e trouxe-o para a estrada, onde todos o pudessem vem. E eu passei e vi. E todo o lixo é quase tudo o que se vê.

Talvez tenha sido o destino que assim quis que este dia se tornasse, também ele, memorável para nós. Ou foi o mar que quis demonstrar assim a sua força, num claro gesto de boas vindas.
Ou não.

29.6.07

Dia 19 - A Praia (e o Gin Tónico)

Experimentei hoje a água do mar.
Resultado de uma famosa receita que mistura vários ingredientes: o mar, a noite, a música, a companhia, e o gin tónico. A ordem é indiferente. O que interessa é tudo ficar muito bem misturado num recipiente adequado: areia da praia.
Perfeito.

Soube que a água tónica tem um efeito de prevenção contra a malária, dada as suas quantidades de quinino. Acreditem, é verdade. E aconselho.

Problema: Não gosto lá muito de água tónica. Solução: Misturar com gin. Beber.

Sou inocente, portanto.
Início da noite. Jantar no hotel. Num acto instintivo e preventivo, iniciei então esse tal tratamento à base de quinino. Várias doses. Terminado o jantar já tardio e o tratamento inicial, revisitei com felicidade o melhor sítio na ilha de Luanda: o Chill Out. Junto à praia, com boa música, melhor companhia e o continuar preventivo das doses de gin tónico, precisei de me refrescar do intenso calor da noite. E da dança. E não só. Concerteza que o calor deve ser um dos poucos efeitos secundários do gin tónico.
Mar. A medo molhei os pés. Seguindo outros.
Maré agitada. Ambiente fantástico. A música ali tão perto chamava-nos para dançar na areia. E a areia chamava-nos para caminhar sobre ela descalços. Ou simplesmente para sobre ela nos sentarmos e sentirmos a brisa deste imenso mar, observando os grandes barcos ao largo e as estrelas ao alto. Tudo nosso. A noite, as estrelas e o mar.
Com os pés escrevi o meu nome na areia. Assim deixei nela a minha marca, efémera mas de eterna lembrança. Assim Luanda me marcou também. De novo. Nesta noite.
Lindo.

28.6.07

Dia 18 - A Infelicidade

Hoje o azar bateu à porta da empresa onde trabalho. Duas vezes. Pela manhã, através de um comunicado da nossa União Europeia, e de novo à tarde, mais intensamente, caíndo do céu (assim foi).
Foi um dia triste. Infeliz coincidência.
Apesar de aqui estar há tão pouco tempo (embora por vezes me pareça tanto) sinto já algum amor à camisola. E sinto por eles. E por isso custou-me também este dia.
Na tristeza não vou julgar nem comentar a origem e a razão das coisas. Não vou dizer se está certo ou errado. Nem desafiar as leis do destino. Mas olhando para esta gente que tanto dá e que nem este abalo lhes tira o sorriso e a dedicação, não consigo ficar ileso a esta infeliz decisão dos Deuses terrenos. Nem ao destino que Deus traçou a quem hoje assim perdeu a vida.
Só espero que este dia tenha sido uma infelicidade irrepetível, e que lhes dê no futuro ainda mais força para lutar contra os azares do incerto. A vontade, a determinação e o que mais for preciso, essas julgo que nunca lhes irão faltar.

27.6.07

Dia 17 - O Tempo

Céu: Pouco Nublado ou Limpo
Nuvens: Dispersas a uma altura de 823 m
Visibilidade: Superior a 10 km
Temperatura Máx: 26°C
Temperatura Min: 18°C
Velocidade do vento: 8 Km SSW
Nascer do Sol (WAT): 06:21
Pôr-do-Sol (WAT): 17:58
Humidade: 69%

Mas sobretudo queria contar-vos sobre o outro 'tempo'. O meu. O tempo que tem sido pouco e que infelizmente (ou não) me dá pouco tempo para ir actualizando este meu diário.
Há ainda o vosso tempo. O que me dedicam e eu muito agradeço, pela amizade e coragem que me devolvem aí desse lado.
Continuarei.

26.6.07

Dia 16 - O Trabalho

Tenho de falar sobre o trabalho. Não apenas para que não pensem que sou apenas um turista em Luanda (doido), mas sobretudo porque me impressiona muito. Não o trabalho em si, mas as pessoas no trabalho. E pela positiva.
Para mim seriam autênticos mártires só pela hora a que acordam todos os dias. 5 da manhã já chega a ser tarde para sair de casa. Antes ainda, cuidam de si e dos seus. Deixam os seus aos cuidados de outros, da rua ou de uma escola para os mais afortunados. Passam duas ou mais horas no trânsito de todos os dias. Chegam à empresa ás 8. Ou antes disso, com sorte.

Ás 8 acordo eu. 10º andar do hotel. Desco o elevador e ando 30 metros. Subo o elevador. 10º andar da empresa. Estou no trabalho.
Contrariado e com o meu péssimo humor matinal, confronto-me logo no elevador com a simpatia sempre presente desta gente bem disposta. Esboço um sorriso de resposta. Com esforço. Afinal é o meu sorriso apenas uma amostra. Um sorriso que se mostra mas não se sente. E não se sente como esta gente sente. No sentir, sou inferior a esta gente.
Organização e disciplina. Com poucos recursos, onde o Windows é 98 e a internet um mito urbano, a organização é exemplar. As secretárias sempre cheias de pastas e papéis. Não cabe mais nada e todos os dias é assim. No dia seguinte as secretárias de novo cheias de pastas e papéis. E tudo se repete e renova de dia para dia. Mas cada pasta tem um propósito e cada papel uma data. A desse dia.
Ligam muito à hierarquia, é verdade. Respeitam muito os Senhores e os Doutores, pois assim foram ensinados. Respeitam a empresa e por ela vestem a camisola. Em tudo. E sabem o que fazem e o que têm de fazer. E fazem o melhor que sabem.
O trabalho aqui é uma bênção, que se agradece com a dedicação e o sorriso de todos os dias. E eu sorrio também, com o prazer de partilhar com eles estas horas do meu dia e aprender com a sua humildade e modo de vida. E tenho muito ainda para aprender. Muito.

25.6.07

Dia 15 - Os Vendedores

Vende-se tudo nas ruas. Tudo. Por entre a confusão de carros parados durante todo o dia de ponta dezenas de pessoas fazem dessa vida profissão e da rua a sua loja aberta ao público. Miudos e graúdos. Homens e mulheres. Com alguidares equilibrados nas cabeças, cheios de fruta e peixe fresco (?) subindo e descendo a rua.
Mas como eu disse, vende-se tudo neste mercado em movimento. Por isso aqui deixo apenas o que de mais insólito tenho visto: Baterias de carros, volantes, auto-rádios, jantes e pneus. Martelos pneumáticos, máquinas rebarbadoras, máquinas de lavar e espelhos de casa de banho. Telemóveis, computadores portáteis, comandos de TV, o POC Explicado e o Código Civil (em pack 'leve 2 pague 1'). Machados, catanas (!) e todo o objecto cortante. Ao percorrermos uma só avenida encontramos tudo para mobilar a nossa casa. E podiamo-lo fazer sem sair do carro. Apenas abrindo o vidro da janela.
O preço é sempre discutido, mas não muito. Aqui não é bem o norte de África. Mas conseguem-se bons preços, dependendo do desespero ou da pressa do vendedor. E se o material é roubado ou não.
Chamam-lhe o mercado informal de Luanda. A mercadoria é desviada dos milhares de contentores violados diariamente no Porto da cidade, e distribuída por estes comerciais de rua. É uma rede, onde tudo se vende e todos ganham. Mas os funcionários do Porto de Luanda... Esses ganham mais que qualquer um. Claro.

24.6.07

Dia 14 - A Paz

Dormi a manhã toda e acordei para mais um dia no hotel. E este parece descansar, também ao domingo. Não encontro hoje a habitual confusão na recepção e no bar estão apenas as pessoas que já são me são, de certa forma, familiares. Com o pc ao colo, partilho com eles o invulgar silêncio que hoje nos é comum. A Paz. A paz que se sente hoje, antes e depois da confusão de todos os dias.


Decido sair para almoçar. As ruas respiram fundo, e até os restaurantes estão fechados. Ok, correu mal. Volto ao hotel e penso não mais sair hoje. Penso e faço. É bom estar no hotel e sentir esta calma, também em mim. Mas ao mesmo tempo invade-me a saudade e a nostalgia... Penso na falta que sinto. E penso em quem me faz falta. E penso porque esta paz me dá tempo para pensar. Esta paz que tão bem me faz mas que ao mesmo tempo me invade com a tristeza de não estar onde e com quem queria estar.

Domingo é o dia mais triste. É sempre um dia de despedida ou de saudade. Sempre foi. E após 15 dias aqui, é-me hoje mais difícil manter o pensamento ausente da falta que o coração sente.

- Nunca mais é segunda!...

Não gosto desta paz. Pois prefiro que passe depressa, e que ao Domingo seja sempre assim. É menos um dia aqui.

Blog Directory - Blogged