Difícil não é sentir a falta de quem nos faz falta.
É pensar no tempo que falta, no tempo que não volta e sufoca, e nas voltas da vida que o tempo nos dá. Fica a esperança de que o tempo aqui me sorria e me traga a vida de volta.
E tem sorrido...


10.7.08

Luandando

- Vamos indo, vamos andando.
É costume dizer-se assim por aqui, quase sempre como resposta ao "Bom dia, como vai?" de todos os dias.
E de facto tem sido assim: Vou indo e vou andando. Vou e ando sem contar as horas nem os dias. E muito menos conto os minutos. Não. Penso em grande e conto só as semanas. As semanas que faltam...
Que estranha é a forma da vida. Como ela tudo nos muda e nos faz mudar. É estranho quando há dias em que nem entendo que um dia pensei fazer por cá a minha vida. Ou ir fazendo, ao menos... Ir vivendo por cá, como já pensei e desejei outrora. Mas tem dias. Há uns em que acordo e até o sol brilha, e outros há em que adormeço e a lua nem vê-la. E assim ando neste "gosto, não gosto" de Luanda há já algum tempo... Era decisão nada fácil.
Mas agora a Vida decidiu por mim: - Ah e tal, eu até gosto disto, as coisas em Portugal não estão nada fáceis para quem quer trabalhar, aqui está sempre bom tempo, o combustível está bem mais barato... Mas a verdade é que o caminho não se faz parado, nem a vida se faz apenas com o presente. E a vida é que sabe de nós.
Pois já passou um ano desde que conheci Luanda, e em um ano desconheci-me e reencontrei-me de novo. Foi um ano em que tudo me aconteceu: rodopiei sobre mim mesmo, pairei sobre o meu mundo, ponderei e realinhei a minha vida, como um rio que é capaz de decidir o seu curso. Agora só falta tudo o que mais me falta: o pouco que ainda não tenho.
O tempo as emoções e os dias que tardam mas voam não me permitem actualizar este blog. Juro que não é por falta de tempo nem de emoções... (e nada mesmo no que respeita a emoções vividas!) Mas sobretudo é o meu tempo que é outro. É o tempo voltado para o futuro. É o tempo de pôr um fim no recomeço e um princípio no infinito.
Cá vou indo então por Luanda.
Vou bem, vou luandando.

1.5.08

Com Sabor

Finalmente escrevo sobre os finest restaurantes aqui em Luanda.
Passou quase um ano e a verdade é que já sinto que estou cá há tempo suficiente para ter uma ideia criada (e algo credível) sobre os melhores restaurantes da cidade de Luanda.
Tentei então fazer uma lista dos 5 melhores, tendo em conta todas as principais variáveis: o preço, a qualidade, a simpatia, o ambiente e a rapidez no atendimento - esta última é importante para quem gosta de acabar de jantar antes da meia-noite, e isso é bem raro por aqui. Além disso, senti na pele o difícil que é encontrar informações sobre os restaurantes aqui, tal como os contactos… Vai-se á internet e… nada. Mas agora será diferente… É clicar e cá está! Vai dar jeito até mesmo para mim.

1. Naquele Lugar (Fortaleza)

Coloco-o em primeiro lugar, pelo ambiente magnífico. Ao ar livre, sentimo-nos em casa, com amigos e como amigos, como se estivéssemos no nosso próprio quintal. Com bom atendimento (embora algo demorado) e uma comida divinal. Como prato, sugiro o bife com pimenta, que é verdadeiramente um espanto, ou a massada de lagosta e lulas, que não lhe fica nada atrás. Mas tudo é bom. Muito bom. Música ao vivo todas as 5ªs feiras, o dia que considero ideal para ir lá dar um salto e viajar no espaço no tempo e nos sabores.
Embora haja espaço sempre para mais um, convém reservar sempre com antecedência.
Preço médio: 35 Usd.
Dona Elsa: 926 323 958

2. Embaixador (Ingombotas)

Elegi-o como o restaurante com a melhor comida de Luanda. É um local fechado, numa rua escondida e escura, mas um restaurante com muita luz, muito português, com requinte e simpatia q.b.. É muito demorado, mas a comida é absolutamente magnífica, onde podemos comer desde um óptimo linguado grelhado a variados pratos de caça. Ao fim de semana, almoço ou jantar, fazem um excelente cozido à portuguesa ou um apetitoso leitão à bairrada.
Preço médio: 40 USD
Rua do Clube Marítimo Africano
Telef: 923 651 632

3. Coconuts (Ilha)

Esteve fechado quase um ano. Aliás, quando vim para Angola já estava fechado para remodelações, e assim foi até há umas semanas atrás. Agora sei o que perdi este tempo todo… Para muitos é o melhor restaurante de Luanda, e para mim está claramente na lista dos melhores, pelo prazer que me proporciona. Junto à areia da praia, com pratos que têm tanto de fascinante como de exóticos, é o lugar ideal para um jantar de fim-de-semana ou um almoço antes ou depois de um banho de sol. Música ao vivo às 4ªs feiras.
Preço médio: 45 Usd
Telef: 222 309 241

4. Caribe (Ilha)

Talvez o mais famoso restaurante de Luanda. É de facto muito bom, mas para mim tem duas coisas mesmo óptimas: um divinal arroz de cherne e o Chill-Out mesmo ali ao lado. É por isso que o aconselho para qualquer início de noite. Tem também a melhor lagosta da cidade, e o melhor ginacujá, que acompanha bem qualquer refeição. Experimentem pedir.
Preço médio: 40 Usd
Telef: 222 202 887

5. Trinca-Espinhas (Ingombotas)

Fica tão escondido que quase nem se dá por ele ao passar. Mas quem o encontra também encontra o sossego e a paz para umas horas de prazer autêntico. Petiscos ou pratos bem requintados, que vão desde as migas de bacalhau com couve até ao bife à negrão, passando pela magnífica açorda de marisco. Para mim é o mais recatado dos restaurantes e temos de oferta a simpatia do Rui Jorge que nos recebe com um requinte de verdadeiro mestre. Todos os pratos são feitos na hora, o que não dá jeito a quem já lá chega com fome e com pressa, mas tem sempre umas óptimas entradas para saborear ao sabor de dois dedos de conversa.
Preço médio: 35 Usd
Morada: Rua António Saldanha
Telef. 923 448 418

Menções Honrosas:

Tendinha (Rua da Missão)

Tinha de figurar nesta lista, pelos meus almoços de cada dia que passa, e pelos petiscos a acompanhar um bom vinho em qualquer serão durante a semana. Recomendo.
Preço médio: 25 Usd
Telef: 923 987 084

Cais de 4 (Ilha)

Pela vista magnífica sobre Luanda.
Preço médio: 40 Usd
Telef: 222 309 430

Poderia falar de muitos outros, como o Pintos, o Pimms ou mesmo o Baía, pois são fascinantes pelo seu requinte e gastronomia, mas são locais que procuro evitar, não pelo gosto mas sim pelo bolso.

Bom apetite!

25.4.08

Sempre!


Hoje é dia 25 de Abril.
Aqui também a madrugada cheira a liberdade... deve ser cheiro que emana de nós mesmos, como sopro e brisa da alma.
Como em todos estes últimos anos que passaram, sempre comemorei este dia com um cravo na mão e na outra mão um amigo. Sempre gritei e cantei à liberdade neste dia e, mais do que isso, brindei à amizade e comemorei a vida.
Há um ano atrás estava longe de pensar que a minha vida pudesse dar tantas voltas, voltas estas que me trouxeram para tão longe e que sem saber me aproximaram de mim mesmo.
Mesmo estando em Angola, não me poderia esquecer deste dia e do significado que ele tem, para mim e para os meus. Não me esqueço de honrar neste dia os que muito lutaram para que a nossa geração e as gerações futuras saibam o que é sentir a Liberdade como eu o sinto...

Sobretudo não poderia deixar de lembrar os amigos que outrora escolhi e que um dia lhes dei a mão para todo o sempre. Aos amigos que com eles comemoro este dia, hoje trago-os comigo também, de mãos dadas.
Passei todo o meu dia ouvindo músicas de outrora que nunca se gastam com o tempo. Músicas que perduram bem vivas desde que nasceu a liberdade. Passei o meu dia em recordações, em revisões da matéria dada de uma vida em constante metamorfose.
Mas para mim este 25 de Abril é único. Porque hoje eu sou uma criança. Sou uma criança pequena e livre, que chora de emoção e que ao mesmo tempo sorri bebendo as lágrimas que vão caindo pelo rosto. Hoje, mais do que ser livre, comemoro a Vida e o seu verdadeiro e único sentido: Ser feliz.

"Esta é a madrugada que eu esperava
O dia inicial inteiro e limpo
Onde emergimos da noite e do silêncio
E livres habitamos a substância do tempo"

Sophia de Mello Breyner Andresen

Porque hoje faz ainda mais sentido: 25 de Abril, Sempre!

15.4.08

E vão três...


Acordo pela manhã e chego bem disposto ao meu carro. Eis que reparo logo que o meu lindo carrinho está estranhamente baixo, tipo carro desportivo. Observo melhor e...
- Boa, mais um furo...!
Não há duas sem três... E assim sendo já lá vão três (!) furos em pouco mais de uma semana. E dois deles em dois dias seguidos, no mesmo carro, e em ambas as rodas da frente.

Para o meu próximo carro acho que vou pedir para que tenha duas rodas sobressalentes, em vez de apenas uma. É que isso dá um certo jeito aqui... Mas a verdade é que até hoje nunca tinha pensado que tal poderia acontecer: um furo já é azar, mas dois é o quê? Será sorte?
Fiquei assim sentado e pasmado de mãos atadas esperando que me viessem trazer um veículo de substituição... E esperei, esperei, esperei até adormecer, encostado ao volante.
Passam mais de duas horas e finalmente chega o homem da empresa de rent-a-car:
- Bom dia! O Sr. está mesmo com azar...
- Duuhh... a sério? Dois furos em dois dias não é sinal de grande sorte não.
- Pois, está ali o seu carro de substituição mas...
- Fixe, vou...
- ... mas fechei-o agora mesmo, sem querer, com a chave lá dentro. Não vai dar, tem de vir outro meu colega com outro carro...
- Não me diga... está a brincar?
- Pois não... é verdadinha mesmo. Mas ele tá mesmo aí a chegar...
- Que m... !
Bem... haja paciência nesta terra. O "tá mesmo aí a chegar" significa que ainda nem seguiu caminho. Por isso só mais duas horas além das duas primeiras, e meio dia de trabalho já perdido, lá veio um outro carro, que pedi para nem desligar a ignição, não fosse acontecer o mesmo... e pude seguir finalmente para a empresa.
NDR: Ainda por cima é azul bébé...

8.4.08

Beleza Interior

O fim-de-semana grande proporcionou-nos uma viagem em grande de três dias rumo ao incerto desconhecido: a província de Malange, terra da palanca negra gigante, das quedas de Kalandula e das pedras altas de Pungo Andongo. Para muitos, o berço da nação Angolana.

Cedo partimos de Luanda, com tempo e com chuva ao romper da aurora. Pela frente esperava-nos uma viagem de mais de quatrocentos quilómetros e com quatrocentos mil buracos na estrada. Ou mais... Estranhamente, ou não, pareceu-me até que atingimos esse número ainda antes de sair da cidade. Com o sol por companhia, o pó de Luanda cede lentamente seu lugar à estrada de pó e ao verde da planície, e a confusão de casas amontoadas transforma-se aos poucos em simplicidade de casas dispersas. Sair da cidade teve também como consequência um furo em uma das rodas de um dos nossos jipes – o meu, claro. Pela primeira vez tive um furo! Incrível... E chato. Mas não sei porquê, parecia-me que este primeiro azar seria um sinal de sorte. Sorri à chuva intensa que veio ajudar e uma hora mais tarde (experimentem substituir uma roda de uma pick-up com um macaco de um automóvel ligeiro...) seguimos de novo viagem.
A paisagem é linda. Mesmo. Verde planície que abraça a estrada com desejo de se mostrar. O casario se mostra também aos poucos, ora destruído ou em destruição. Incógnito. O caminho torna-se numa viagem à nossa história, à guerra e ao tempo presente de Angola, numa mistura de deslumbramento e desencanto. Curioso como por entre o pó da estrada e o meio dos destroços nas povoações por onde se passa se descobre destruída a nossa feliz presença e se sente a presença fria da guerra ainda quente. E esta destruição toca-nos, como se estivéssemos numa visita por um museu vivo que emerge aos nossos olhos como poeira que nunca assenta no chão.



Almoçamos bem no Cacuso, a cerca de oitenta quilómetros do nosso destino final. O nosso olhar que tanto se prendeu outrora na beira do caminho puxou-nos agora ali para bem perto, até uma enorme igreja em renovação. Quase Sé e único edifício em renovação que, mesmo ainda sem tecto, já desponta a curiosidade futura pela sua incrível beleza e imponência. Naquele lugar sagrado também nós nos tornámos curiosidade, aos olhos de quem passava e nos via ali, ou de quem ouvia nossas vozes cantando e ecoando na nave daquela igreja.
Chegamos a Malange já era noite. Desde o Cacuso até à capital da província (os tais oitenta quilómetros) fomos tentando encontrar uma estrada por entre os buracos que nos apareceram pela frente. Em vão. Foi um sacrifício para nós e para os jipes fazer este bocado do percurso, mas de tão ansiosos que estávamos de chegar ao hotel e descansar um pouco da viagem, sorrimos enfim por ver as luzes de Malange ao longe. Chegámos mesmo.

Tínhamos quartos reservados na casa dos horrores de Malange... perdão: no Hotel Gigante. Azar, ou apenas destino, não havia mais quartos vagos em nenhum outro hotel de Malange. Não vou alongar-me muito a descrever este antro, pois não merece nem publicidade negativa. Aliás... chamar àquela espelunca de hotel já é um autêntico crime, e de gigante só mesmo as baratas. Merece uma passagem... bem ao largo.

Dia 2. Acordámos do pesadelo (quem conseguiu dormir um pouco) e cedo deixamos a cidade de Malange rumo às quedas de Kalandula. O percurso fez-se em constante deslumbramento por entre os buracos da estrada e muitas paragens para contemplar e gravar tantas imagens de rara e enorme beleza. O enorme capim cortado pelas águas de um rio que serpenteia pela planície e que sob ela passa várias vezes, e pelas sanzalas junto à estrada, onde nascem mais olhares de crianças por cada carro que passa. Chegamos enfim a Kalandula. Uma pequena e acolhedora povoação situada no alto de um planalto, imponente como rainha que do seu trono observa suas terras ao longe e bem ao longe de tudo. Conserva ainda algumas marcas do colonialismo, nas casas, nas igrejas e nos próprios costumes da terra, que tem simpatia como sinónimo. Chegamos logo depois às quedas de Kalandula. Duque de Bragança eram seu nome ancestral, e acredito que encontrei a razão quando as descobri de perto e as encontrei majestosas e incrivelmente reais. As segundas maiores quedas de água de todo o continente africano, com cerca de 100 metros de vertiginosa altura, são absolutamente indescritíveis.



Ali ficamos todo o dia que nos resta, em quietude sobre a água que cai a nossos pés e sob a chuva que se abate sobre nós, ambas água em queda constante. Fiquei inebriado com a leveza e transparência da água que cai, com uma força tal que nos ensurdece os sentidos e nos deixa mudos e sós. Abismados.
Regressamos já de noite animados para o desânimo do hotel em Malange. O cansaço do dia e da aventura passada deixa-nos dormir tranquilos nessa noite. Uma ultima noite de sono, num hotel onde, apesar do receio em fechar os olhos, sentimos que é o melhor que temos a fazer.

Dia 3. Nunca me senti tão feliz de fazer um check-out num hotel. Até dinheiro nos roubaram nessa altura, mesmo à frente dos nossos olhos... Mas a verdade é que estávamos livres de um pesadelo, e prontos para mais um dia de aventura que, apesar de ser o último e de marcar por isso o inadiável regresso a Luanda, teria muito ainda para viver e contar. O destino mais próximo: as pedras negras de Pungo Andongo. Chegando ao Cacuso, onde parámos de novo mas desta vez para visitar o mercado (muito) local, viramos para sul rumo ás Pedras Negras. Vêm-se ao longe, como se estivessem à distância de braço e quase as pudéssemos tocar. Mas o caminho, esse, seria bem mais longo do que parecia...



A picada estende-se como um tapete até ao coração das pedras, esburacado e enlameado, é certo, mas comparativamente melhor do que a estrada que deixámos para trás. A certo ponto, já bem junto às naturais muralhas de pedra, viramos para uma outra picada que nos leva até ao seu interior, à povoação de Pungo Andongo. O caminho parecia impossível, sem rasto ou marca de qualquer passagem anterior. O capim escondia completamente a estrada e só se abria para nós ao passar, como um abraço de boas-vindas. A terra e a lama ora se tornava em desfiladeiros de água e de pedras, ora em crateras por onde nunca julguei que um dia passaria um carro.



Chegamos a Pungo Andongo. Uma povoação escondida no seio das pedras altas, e que nos faz logo pensar que foram as próprias rochas que nasceram em sua volta como muralha para a proteger do resto do mundo. Três ou quatro casas, uma igreja em ruínas, um posto médico e uma escola renovada... quase como uma miragem impossível... como é possível existir vida ali? Mas existe.
Compreendi que ainda se pode encontrar em Angola a harmonia entre o homem e a natureza. O sentimento de protecção divina, de misticismo em todo o seu esplendor. Local de história e de estórias, de lendas de rainhas, de batalhas e de conquistas, de plantações de café e de trabalho na terra. Refúgio de vida enriquecida por todo um passado que aqui ainda está bem presente e que cresce em vivências de outras histórias. Local que não se esquece e que nos conquista o coração quando através dele subimos lá no alto e vemos tudo o nada que é tanto e que existe à sua volta. Sem palavras, só silêncio e pedra e um grito que ecoa e nos chega suavemente de volta ao coração.


Foi o local mais belo que encontrei até hoje em Angola. Talvez o mais belo e puro de tudo o que já encontrei em vida e em todos os lugares por onde passei. Difícil de superar pela sua beleza sagrada e que nos traz a paz à alma, como uma prece que ali é ouvida e tão gentilmente concedida. Senti ali que estive para lá das nuvens, e bem mais perto do céu.

Já a lua ia bem alta quando chegamos a Luanda. Cansados, mas com um brilho no olhar pelas imagens que trazemos connosco em constantes e doces lembranças.
Foi com um feliz pensamento de regressar um dia com mais tempo que adormeço. Nessa noite sonhei que voava sobre as pedras de Pungo Andongo e que deslizava depois nas águas de Kalandula, em serenidade e calma como uma criança renascida. Tivesse eu asas para lá ir sempre que pudesse…

Mas em Angola as coisas mais belas são aquelas que o homem não consegue nunca destruir: água que cai e pedra que fica. Sei por isso que estes dois elementos vivos da natureza ficarão para sempre, tal como ficaram dentro de mim, em eterna recordação de momentos e de amizades vividas.

24.3.08

Águas Passadas


Páscoa. Cumpri feliz a tradição que se cumpre por esta altura da minha terra natal e fui também passar as àguas. Não o fiz propriamente como Moisés, pois não tenho, infelizmente, esse poder nem mandamento. Mas a vontade era essa: abrir um pequeno trilho através do imenso mar, e seguir caminhando, em passos rápidos, a caminho da minha aldeia por estas alturas do ano. Até que tentei... mas não deu: apenas o consegui com o pensamento... Acho que é porque estou em Angola afinal... e vendo bem as coisas, já cruzei o oceano e cheguei à minha terra prometida. Aqui. Por isso digo apenas que fui até junto do mar, passar o fim-de-semana. Apenas para viver e recordar. Apenas para estar mais próximo, por breves momentos.

Ficámos a sul, na praia de Sangano, por dois dias e uma noite. Por dois dias cheios de sol e por uma noite cheia de luar, com a lua deslizando misteriosa e ardente pelo céu, como um foco de luz que nos ilumina em pleno palco.
Artistas. Montámos nossas tendas no final do dia, enquanto se montava o cenário da noite e do mar atrás de nós. Seguiu-se um óptimo jantar no Pirata, o resort ali mesmo ao lado que serviu para nós como autêntico porto de abrigo para as necessidades básicas: comer, beber, e seus derivados.

Depois foi o acto final, concluído com aplausos em apoteose: um banho de mar à meia noite, assistindo à dança de carangueijos por entre as brancas ondas beijando a areia em suaves e borbulhantes carícias. Eram reflexos de lua em movimento, numa autêntica festa da espuma. E nós éramos ali apenas sombra, seres estranhos invadindo esse rito natural de todas as noites. Mas o mar logo nos convidou a entrar, mesmo sem termos convite. A lua dava-lhe cor e calma, luz e alma, ao mar e a nós mesmos, e fez-nos assim sentir parte viva e integrante deste magnífico palco que é a mãe natureza.
Nesta Páscoa cumpri feliz a tradição e passei as águas mesmo aqui em Angola. Passei as águas e deixei para trás todas as águas passadas.

15.3.08

Regresso


Eis que voltei depressa. Meio à pressa e sem pressa. Olhei para trás mais uma última vez, tentando gravar com o olhar todo aquele momento na memória. Guardei cada respirar de emoção e cada olhar de ternura, para recordar depois a vida inteira. Na invulgar e feliz despedida, com um sorriso e um olhar de menino, lá segui confiante a luz do meu novo destino, voltando afinal ao mesmo destino de sempre: Angola.

Confesso que a vontade de ficar era bem mais forte do que tudo: afinal naquele momento o meu mundo estava todo ali... bem presente naquele presente. Por isso, e sem querer, resisti à partida. Hesitei na felicidade, temendo conseguir ser mais feliz. Mas de novo peguei em tudo o que me espera lá bem longe e no tudo que levo comigo, bem pertinho e junto ao peito. E esse tudo é também a ansiosa incerteza do que virá, a meias com a forte certeza de que tudo irá correr bem. Sinto que sim, como sempre. Tem sido assim.

O que mudou é que a palavra regresso sempre teve em mim um destino chamado casa. Tal como em cada um de nós existe sempre um sítio a que chamamos de nossa terra. Regressar a casa sempre me deu aquela prévia ansiedade que aperta forte o coração, sem hesitação, e que me faz sorrir mesmo antes do regresso. Regresso sempre foi para mim um finalmente, um respirar de contentamento, um acabar de sufoco, um voltar e nunca um partir. Mas desta vez, e por vez primeira, sinto ao partir que estou a regressar. Regresso à minha vida, à vida que agora me espera, depois de tanto passado. E agora o meu presente é tudo o que tenho e tudo aquilo que escolhi. O meu futuro é apenas pura incerteza, mas aceito-o confiante e de livre e própria vontade. Não sei se tudo o que acontece nos é afinal predestinado... mas a verdade é que gosto de pensar que sim. Como hoje ouvi de um amigo, afinal o mundo não pára de girar e nós também não podemos parar. E é nesse simples movimento que nos encontramos e desencontramos, entre nós e a nós mesmos.

Deixo lá longe o cais do meu presente e entrego-me inteiro ao sabor das marés que já me conhecem. Regresso por isso a Angola.... pela primeira vez. Encontrando-me.

1.3.08

Até breve


Digo adeus à enorme Luanda através da pequena janela do avião. Olho a medo para a cidade lá do alto e sinto e recordo a mesma emoção que senti da primeira vez que a avistei: Luanda é mesmo assustadora. E assustadoramente feia.

Fecho a janela e também os meus olhos, como quem carrega no off de qualquer botão, desligando em urgência as emoções. Respiro só por um largo momento e penso nos momentos que se seguem. Recapitulo os próximos capítulos e revisito em pensamento a minha família. Só ela me preenche e invade de uma intensa e brutal saudade. E aqui a palavra saudade também existe e se sente como tatuagem no corpo: só desaparece se tirarmos uma parte de nós mesmos.
Abro de novo os meus olhos. Sorrio olhando para o lado em contemplação e assim me deixo adormecer, vazio e só feliz por dentro.
Hoje deixo Luanda e volto para casa, em serenos sobressaltos. Deixo Luanda e desta vez digo adeus sem vontade de voltar... Afinal não deixo nada para trás: levo comigo metade do que me importa e parto ao encontro da outra metade de mim. Parto assim sentindo em mim a vida inteira.
Mas sei que vou voltar. Em breve, de novo e como novo. Sei que tenho de voltar... E quero voltar sorrindo e com a mesma alegria com que agora digo adeus. Espero conseguir.
Volto sim... Por agora vou só respirar um pouco de mim. Porque preciso. Porque quero sentir o frio no rosto e o calor no coração. Porque quero abraçar minha família e minha vida. Preciso do seu abraço. Porque preciso agora, mais que nunca. Porque a vida não pára, e não pára de nos surpreender.
Vou por isso libertar minhas amarras e abrir os braços à vida, como a vela de um barco sentindo o vento. Vou e volto... num adeus de até breve.

27.2.08

Que M....


17.00: Saio do trabalho e pego no carro. O objectivo é chegar a horas à clínica dentária, cerca de 2 Km e hora e meia de distância. Pouco preocupado com a distância e o tempo, pois afinal tenho 90 minutos para fazer 2 Km... Mais preocupado sim com o resultado final da consulta e com o sofrimento que adiei... até hoje. É que extrair um dente em Angola é mais que motivo para preocupação...

17.30: Reparo que estou ainda no meio do trânsito... Andei 200 metros, se tanto... Mas continuo confiante. Deve ser só aqui a confusão desta rua, depois é sempre a andar...

18.00: Ainda estou na mesma rua e já decorei os anúncios todos nas casas de ambos os lados. Já meti a conversa em dia pelo telemóvel e sintonizei e gravei as estações de rádio que mais me interessam. Cantei um pouco, até reparar que no carro ao lado estavam a olhar para mim e a julgar-me doido. Contive-me. Vi finalmente se a documentação do carro estava ok e repreendi-me quando olhei para a porta e vi o lixo que se acumula, com os pacotes de leite e de sumo vazios que são por vezes o meu pequeno-almoço. Olho para o relógio e apercebo-me incrédulo que em meia hora andei apenas 10 metros. M…

18.30: Já comprei pastilhas a um miúdo que passou, para aliviar o meu stress. O ar condicionado do carro é fraquinho e começo a sentir um calor que nem sei se é do sol ou do nervosismo. Tento não pensar na consulta e no dente que vou extrair, mas acaba por se tornar inevitável. Penso que devia ter tomado o último Clonix, ou alguns comprimidos para dormir, mas que se lixe... Sou forte, não é? Ligo para a clínica, a informar que devo chegar um pouco atrasado... Afinal andei apenas mais 10 metros, mas a rua também está a acabar... Agora é só passar o cruzamento e depois é sempre a abrir. E da clínica respondem-me com o tradicional "- Não há problema”. Relaxo...

19.00: Começo a dizer asneiras. - E os carros não andam porquê? - Tu aí, anda mas é com isso! Passei o cruzamento mas o trânsito continua parado. Estudo outras alternativas, outros caminhos para chegar mais depressa ao mesmo destino... Mas aqui é tudo sentido único, não tenho hipóteses, nem para trás nem para a frente. Bem, o que vale é que liguei para a clínica a dizer que estava atrasado... Não há problema.

19.30: Estou quase, quase a chegar! É já a rua seguinte! Já sorrio, um pouco sem razão, porque afinal vou tirar um dente, não devia estar a sorrir... Mas ao menos saio deste trânsito infernal. E além disso dói-me o corpo de estar tanto tempo sentado no carro. Ai, que vontade de chegar ao dentista! Está quase! Já canto de novo, por entre as asneiras e um trânsito nunca visto...

19.45: Toca o telefone. Olha, é da clínica! Fixe, se calhar estão preocupados comigo... – Senhor, já passou da hora, fechamos às 19.30, não vai dar. - Mas eu estou já aqui! E é só virar a esquina e estou já aí! - Sim, mas o doutor já foi embora... não vai dar. - Mas a senhora disse-me que não havia problema... Eu liguei a dizer que estava atrasado e além disso estive 3 horas no trânsito para cá chegar! - Pois... mas agora só para a semana. - Que m...! Olha, vai… E chamo-lhe alguns nomes e desligo só depois.

20.00: Continuo chamando-lhe nomes enquanto perco a paciência no trânsito intransitável e nas horas intermináveis que me esperaram no ansioso regresso a casa.

25.2.08

Mais...

Muitas vezes sinto que acabo por me repetir...
É que tudo me parece mais do mesmo: beleza rara e infinda. A verdade é que me sinto fascinado com cada experiência que partilho e com cada lugar que descubro neste pequeno grande recanto do mundo. Angola tem tanto...e tanto mais para descobrir!
Sábado rumámos para norte, rumo incerto à procura de uma praia que se diz quase mítica: a praia de Santiago. Mítica pela sua beleza, que tanto ouvi falar com misterioso brilho nos olhos de quem conta histórias em noites de luar. Mítica porque em tantos e tantos meses ouvi falar dela, mas nunca soube lá ir ter ou chegar. Até hoje, em que finalmente chegou o dia certo e a incerta aventura. Assim partimos sorrindo deixando para trás a confusão de Luanda, seguindo a estrada de tristeza até ao Caxito e virando algures no meio do tempo e da estrada em direcção ao mar a oeste. Seguimos por mais estrada em caminhos de pó. Imenso pó como nevoeiro denso e feito de tão leve poeira, como se fosse apenas vapor de terra. O horizonte indistinto aos poucos foi aparecendo, como se o próprio mar fosse o sol em cada aurora. Os nossos olhares curiosos presos em crescente ansiedade, tentando olhar mais à frente, apressando o deslumbramento. Eis então que a encontrámos, pouco depois, com o mesmo desejo de quem encontra um oásis no meio do deserto. E que linda é a praia de Santiago!
Praia deserta aos nossos olhos, de imensa areia branca e mais suave que o mar. E na areia branca brilham vivas inúmeras estrelas do mar. E no mar escuro brilha a areia branca em reflexo e um sol de meio dia perfeito. E no mesmo mar, velhos e imponentes navios gastos pelas ondas e despidos pelo tempo ali descansam perdidos e esquecidos, até à eternidade.
Certo estou que foram eles que escolheram este lugar para seu eterno repouso. Se eu fosse um navio faria certamente para aqui a minha viagem derradeira.
Ao longe perdem-se na vista muitos outros barcos mudos, junto à praia que nos parece interminável. Umas poucas casas ao longe e outras mais perto de nós, das quais não se distingue nem sombra nem movimento. Para trás ficaram as dunas e um mar de planície que separa a praia do resto do mundo. À nossa frente apenas a calma e a serenidade de um mar sem fim, que nos contagia com as suas próprias emoções.
O silêncio ali é cortado apenas pelas nossas vozes. Apenas nós. E nem o som das vagas ondas se distingue no silêncio daquela praia. Naquela praia, só nós e o tempo que passou.

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